Museu de Arte Murilo Mendes | MAMM

POVOS INDÍGENAS EM QUADRINHOS

Era noite, o céu escuro intensamente pontilhado de estrelas, onde vez por outra a luz fugaz de um meteorito riscava. A Via Láctea debuxava seu alvo caminho. O pátio da aldeia dos Metyktire era plano e limpo e, das várias fogueiras espalhadas, subiam faíscas e labaredas projetavam sombras fantásticas no chão. No ar parado, a fumaça que se evola e contorna todas as coisas, envolvia tudo num ar de mistério, de distância, de irreal… Movimentava-se no quadro o corpo nu de Komoye com sua borduna no ombro, gestos largos, passadas firmes e com sua forte voz conjurava heróis, relembrava lutas e felizes caçadas mesclando passado e presente… Era o “contador de histórias”, personagem importante, transmissor do conhecimento, do universo mágico, dos mitos e dos ritos.

Sob a influência das imagens cuidadosamente elaboradas por Sérgio, e tomado de um misto de saudade e melancolia, revivo a beleza e a magia dessas noites guardadas há muito no meu passado. Sinto vividamente a ação do “contador de histórias,” quer esteja no pátio da aldeia sob o céu estrelado, quer no escritório com a prancheta sob a luz de néon. Ele penetra fundo, ficando indelével e para sempre em nossas mentes e corações. Constato e lamento que, não fosse a fereza das nossas ações, nossa imensa cupidez e permanente arrogância, estaríamos todos, índios e não índios, irmanados, aprendendo juntos, lendo histórias em quadrinhos ou escutando-as pelos terreiros da grande aldeia global. E para criar esta bela obra que, mais que simples História em Quadrinhos, é um registro dos acontecimentos e, portanto, uma fonte de consulta, Sérgio, consciente ou não, lapidou o coração e sensibilizou a alma durante os vinte e seis anos que passou entre o céu e o mar do maravilhoso Tahiti, convivendo e aprendendo com a cultura altamente sofisticada dos Ma’ohi.

Ambos estão de parabéns. A editora Zarabatana Books, por romper o ciclo de indiferença relacionado ao tema, e Sérgio, pela beleza das imagens e seus cuidados com a verdade. Saúde e longa vida para os “contadores de histórias”.

Sydney Possuelo

Etnógrafo