Museu de Arte Murilo Mendes | MAMM
Um desenhador encontra em um Atlas de Anatomia, um universo imagético coletado e registrado por um olhar percuciente e detalhista de um outro desenhador, advindo de um espaço e um tempo já seculares – a França da primeira metade do século XIX.
Mostra-o para um(a) outro(a) desenhador(a) que já cultivava a sedução pelos livros de anatomia e desencadeia uma paixão à primeira vista. Fascinados pelas imagens, debruçam-se sobre cada prancha, absolutamente enredados nas formas, nos traços, nas cores. Suspiram, desejando, talvez, desenhar assim, com uma precisão científica que está, no entanto, eivada de artisticidade. As fronteiras entre a ilustração científica e o desenho artístico lhes parecem porosas; como delineá-las se a funcionalidade da primeira desaparece diante de seus olhos, restando-lhes aquilo que os afeta?
O desenho requintado suscita admiração e nostalgia. Admiração pelos autores do livro: um médico e um artista que dedicam cerca de vinte anos de suas vidas a uma tarefa obsedante. O primeiro a escrever um tratado de oito tomos, sobre anatomia humana e cirurgia e, a preparar cada peça anatômica. O segundo a ilustrá-lo, a partir do desenho do natural, posteriormente transposto para a litografia, uma técnica de reprodução relativamente jovem nos anos de 1830. Nostalgia devida à representação de figuras/corpos como não os fazemos mais – apressados que somos em viver sem perder tempo, como se desenhar minuciosamente não nos permitisse viver intensamente. Contentam-se, portanto, diante desse livro, a desenhar com os olhos, a sonhar que sejam ou que são capazes de elaborar imagens que se aproximem desse universo representativo.
Daí, ainda que sempre disponível, um único exemplar do livro já não é suficiente para a apreciação das imagens. Urge que se adquira um outro, pois o livro exige do segundo desenhador a posse, a liberdade de folheá-lo, de se deter sobre cada imagem quando bem lhe aprouver, de se perder nos meandros desses corpos ofertados. Corpos abertos, fragmentados, dilacerados para revelar a beleza da vida, mesmo que após a morte.
Guardado por um tempo, o livro convida o olhar e a mão. Conclama os desenhadores a desenvolver imagens que registrem o modo como eles se sentem afetados por sua angustiante beleza. Faz-se, portanto, um pacto. Cada um construirá seu diálogo com essas imagens perturbadoras.
Eugênio Paccelli Horta
Wanda de Paula Tofani