Museu de Arte Murilo Mendes | MAMM
Um caderno – e porque caderno, se poderia tomá-lo como repertório de anotações? ou de esboços? E uma anotação ou um esboço mostrariam apenas o que talvez se prepare para ser outra coisa? Talvez esteja em questão sobretudo um ponto de vista, um modo de expor, que até mesmo inclua em seu procedimento alguma insinuação de possíveis reformulações. O caderno parece constituir-se como um apanhado de elementos dispersos que, no entanto, vão pouco a pouco encontrando sua posição na sucessão das páginas. E exatamente a sucessão determinada das páginas, bem como suas dimensões regulares, impõe possivelmente um rumo, quem sabe um ritmo – o caderno não apenas recebe as imagens, ele faz parte do trabalho. Seria possível então falar de um modo de organizar. Independentemente do que viria adiante, importa o que está ali – uma produção ordenada de reconfigurações, e em certos momentos quase uma conversa entre amigos.
Logo no começo do trabalho de Mário Azevedo, tem-se uma página com apenas um elemento – que se lê como ponto de partida, ou título, ou sinal. Mas não é só a palavra que interessa, interessa também a cor que nela é empregada. A “janela” em “verde” remete imediata e inevitavelmente às prosas de Murilo Mendes sobre Portugal que tiveram edição ilustrada por Maria Helena Vieira da Silva – Janelas verdes. O trabalho de ambos surge então como referência ao longo do caderno, ainda que não referência exclusiva. Murilo Mendes observou que por “janelas verdes” queria referir-se a liberdade, a espaços abertos. Sem dúvida é no âmbito desses espaços abertos que ressonâncias de textos, de cores, de linhas, de paisagens, de cenários, de arquiteturas, de concatenações vêm fazer parte das produções deste álbum. Os fragmentos de textos provêm ainda de poemas, de uma outra janela de Murilo, a Janela do caos, assim como muitas imagens têm a ver com outros trabalhos de Vieira da Silva. E pelo menos um outro nome irrompe num canto de página, o de Francis Picabia, como que vindo de outro universo, mas que também ilustrou poemas de Murilo, justamente os de Janela do caos. Como as linhas, entrecruzam-se textos, concepções. Não é à toa que seja como se tudo se passasse sob o signo da transformação e do esboço, palavras tão presentes aqui e como que intercambiáveis, ou pelo menos reciprocamente instigadoras, uma da outra e, assim, do andamento daquilo que se espalha pelas páginas, quase como que numa espécie de método de trabalho.
O que no álbum lembra uma espécie de registro, por assim dizer, parece também trazer uma carga de adesão, de afeto, parece ainda, por isso mesmo, funcionar como elemento que desencadeia a imaginação, com cores e gestos próprios. É certo que as palavras, os fragmentos de texto aí presentes têm importância enquanto texto, mas mais ainda por se ligarem aos textos mais amplos a que inevitavelmente remetem. Além disso, porém, adquirem uma condição visual, uma determinada conformação e talvez sobretudo uma posição e uma função no conjunto de cada página. O trabalho é assim em boa parte sobre a relação entre texto e imagem, ou mais precisamente, sobre como um texto funciona no contexto de uma imagem ou até mesmo como imagem. Trata-se de certo modo ou pelo menos em parte de um exercício sobre as possibilidades visuais da escrita. Entre ler e ver há sugestões então de um procedimento, o do ir e vir entre uma prática e outra, mas intensamente a experiência de um movimento – inclusive o de passar as páginas –, de uma aproximação.
Júlio Castañon Guimarães / Maio de 2014