Museu de Arte Murilo Mendes | MAMM

Janela do caos no Papel do Poeta

O livro “Janela do caos”, considerado hoje uma raridade bibliográfica internacional, está até o fim deste mês em exposição na mostra “O Papel do Poeta” do Museu de Arte Murilo Mendes (MAMM). A obra possui edição única, limitada a 220 exemplares no mundo todo, e é uma parceria entre o poeta nativo de Juiz de Fora, Murilo Mendes e o irreverente pintor francês Francis Picabiá.

Parede da galeria Convergência, dedicada às gravuras do livro

A gênese de “Janela do caos” aparece em meados de 1948 e 1949 nas cartas pessoais trocadas entre Murilo e o amigo, Roberto Assumpção, diplomata brasileiro na embaixada da França no período, responsável pela edição. Toda a correspondência entre os dois foi publicada no livro “Cartas de Murilo Mendes a Roberto Assumpção” (Fundação Casa de Rui Barbosa, 2007), sob organização de Júlio Castañon Guimarães.

Nenhuma carta de Roberto para Murilo foi encontrada, mas nas cartas do poeta, fica claro, que a proposta de editar um livro ilustrado por Picabia vem do diplomata, coincidentemente no mesmo intervalo de tempo em que Murilo pretendia lançar no Brasil uma antologia de seus poemas. Nas palavras do poeta, “sensibilizado” com a ideia, ele imediatamente “topa” a sugestão do amigo.

Para a ocasião, Murilo escolheu inicialmente 19 poemas dos três livros mais recentes naquele momento: “Poesia liberdade”, de 1947, “Os discípulos de Emaús”, publicado em 1945 e “Mundo enigma”, de mesmo ano do anterior. Ao final, apenas seis textos de dois livros foram selecionados para compor o volume, sendo eles, “As lavadeiras”, “Janela do caos”, “Poema dialético”, “Choques” (os quatro de “Poesia liberdade”), “Poema barroco” e “Tobias e o anjo” (os dois de “Mundo enigma”).

Apesar do número reduzido de poemas, eles representam o resumo do espírito da poesia muriliana. Ao contemplar as linhas do livro “Janela do caos” fica nítida a heterogeneidade temática de Murilo Mendes. Observações sobre a sociedade passam quase despercebidas em palavras que inspiram a criação de imagens mentais, o cotidiano vira cenário para discussões filosóficas e existenciais e o surrealismo convida o leitor a acessar as próprias janelas da alma com debates poéticos sobre ordem e loucura.

 

A CONVERGÊNCIA DE JANELA DO CAOS

Detalhe do livro com fragmento de poema e ilustrações de Picabia

A união das estéticas visual e verbal que acontece em “Janela do caos” era um desejo antigo do poeta. É provável que isso tenha surgido no momento de admiração da passagem do cometa Halley, em 1910, com que, aos nove anos de idade, o escritor relata ter tido uma revelação poética. Esse fenômeno se torna o marco de uma vida em prol de palavras, e, permite notar, no decorrer do tempo, uma busca incessante por conhecimento de outras artes e por uma universalidade na qual tudo possa entrar em convergência.

Murilo foi crítico de arte, colecionou uma série de pinturas, gravuras e desenhos, que são preservados, até hoje, no acervo do Museu. Parte da coleção de artes visuais e de livros, que serviram de inspiração literária para o artista, está na exposição “O Papel do Poeta”, em cartaz até o dia 22 de março no MAMM. A mostra reúne obras em suporte de papel e dedica uma parede da galeria Convergência ao exemplar de nº84 de uma das obras que melhor atende ao caráter sublime das aspirações do poeta: “Janela do caos”.

Na época da publicação, o próprio Murilo destacou “sempre sonhei com um livro meu lisível. É de fato o meu primeiro texto lisível, visível”, em uma das cartas enviadas ao amigo Roberto. Na mesma missiva, o poeta revela compreender o ideal do  escritor francês, Sthéphane Mallarmé, de enquadrar perfeitamente o texto poético em um papel especial. O comentário torna possível conferir à “qualidade lisível” de “Janela do caos” a conotação de um livro que possa, ao mesmo tempo, ser visto, admirado e lido.

A harmonia da publicação, entretanto, não aparece apenas no diálogo entre a escrita e a imagem. A edição de Roberto Assumpção a faz reverberar também na diagramação do volume, que é resultado do olhar artístico do curador e pintor francês Michel Tapié. E se não fosse ele o autor da maquette de “Janela do caos”, a participação de Francis Picabia como ilustrador do volume talvez não tivesse sido possível.

No mesmo ano de publicação do livro, 1949, Tapié havia organizado a exposição “Cinquante ains de plaisir” de Picabia, inaugurada em 4 de março. Todavia, semanas antes, a casa do pintor havia sido assaltada, e as jóias em que ele investira todas as economias tinham sido roubadas. Assim, para que Francis Picabia conseguisse se sustentar, Michel Tapié providenciou com Roberto Assumpção para que o pintor participasse do projeto.

Sem conhecer a obra de Murilo Mendes até então, Picabia aceitou a tarefa das ilustrações, e surpreendeu a todos – principalmente a Murilo – pelo perfeito casamento de suas imagens com o texto. O surrealismo presente na obra muriliana, por meio das temáticas que entremesclam inconsciente, espiritualidade e catástrofe aparece de forma sutil e precisa nas gravuras de Picabia.

Detalhe de ilustração de Picabia

Com uma obra tão multifacetada quanto a do poeta, Francis Picabia, entre a maioria dos pintores de sua época, foi o que mais experimentou os estilos de arte vigentes. O pintor passou por uma fase cubista, tornou-se o pai do dadaísmo e, por fim, adotou alguns traços surrealistas em sua obra. Entretanto, jamais se autocaracterizou como um artista de qualquer uma destas fases. Fato que dialoga com a arte de Murilo, que também transita por estes movimentos na poesia.

Em carta para o amigo Roberto Assumpção, Murilo Mendes, que raramente elogiava suas publicações, agradece emocionado pelo carinho dedicado à edição do volume e discorre sobre a substância das gravuras de Picabia: “ele ilustrou no grande sentido, isto é, sem procurar uma correspondência gráfica total do texto, o que é impossível (…) Ele deu a atmosfera da minha poesia”.

Assim, ao colocar para o leitor figuras reais como olhos, bocas, corpos, rostos, animais e fortes expressões num contexto surreal, criado pelos poemas, as imagens do livro “Janela do caos”, materializam algumas aspirações do poeta. E refletem, portanto, o contato sensível de “um grande poeta brasileiro e um grande pintor da escola de Paris”, como disse o jornalista Paulo Mendes Campos, no artigo “O itinerário de um livro em Paris”.

A EDIÇÃO

No grande formato de 25×32 cm, “Janela do caos” possui edição única, com apenas 197 exemplares numerados e 23 fora de comércio. O livro, apresentado pela primeira vez na importante galeria francesa da época, Galerie René Drouin, place Vendôme, no dia 8 de novembro de 1949, em Paris, foi muito apreciado pela crítica. O que mais chamou atenção na publicação foi seu caráter de unicidade, garantido pela escolha dos colaboradores e materiais que hoje compõem o livro, feita pelo diplomata brasileiro Roberto Assumpção.

Já no papel em que estão impressos os poemas de Murilo e as gravuras de Picabia pode-se perceber a singularidade de “Janela do caos”. O chamado papier d´Auvergne (papel Auvergne) é completamente manufaturado e era fabricado apenas no Moinho Richard de Bas, na região de Ambert da França – área ocupada hoje pelo Museu Histórico do Papel e considerada uma das pioneiras na história da fabricação de papel artesanal.

Detalhe das páginas do livro, com bordas irregulares. As gravuras em vermelho vêm apensas no livro, em suite ao final.

O Auvergne é formado por bordas irregulares e possui uma textura, ao mesmo tempo suave e porosa, assegurada pelas fibras de papel aparentes. Em uma observação minuciosa é possível notar as marcas d´água no rodapé de cada página do livro, com a inscrição “Auvergne a la Main” (Auvergne feito à mão) e o brasão do Richard de Bas, que possui um coração e uma cruz ao meio, acompanhado do ano de fundação do Moinho, 1326.

O texto, composto de seis poemas, é distribuído em 40 páginas com margens generosas – possíveis graças às dimensões do papel -, “das quais, num requinte de proteção e sensualismo de matéria, treze são em branco abrindo e fechando o texto”, aprecia o crítico de arte brasileiro, Ruben Navarra, no artigo “Uma edição brasileira em Paris”, divulgado no Diário de Noticias, em agosto de 1949.

Acompanhando o número de poesias, as seis gravuras em litografia preparadas por Picabia se encadeiam ao longo do livro, em preto. Ao final, há uma suíte com as obras, que podem ser apreciadas separadamente na cor vermelha e encerram o jogo harmônico de “Janela do caos”. Para Paulo Mendes Campos, a limitação da edição pode aborrecer algumas pessoas, mas se não fosse ela, seria impossível reunir em um volume, dois artistas que muito “se parecem no poder que têm de transformar a si mesmos e aquilo em que tocam”.

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