Museu de Arte Murilo Mendes | MAMM

MEMORABILIA URBIS

Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade.

Manuel Bandeira

Murilo Mendes, em “Chronica Mundana”, no jornal A Tarde de 15 de outubro de 1920, aventa Juiz de Fora como uma “cidade onde há espíritos cultos que estão em contato permanente com os grandes centros”, “cidade elegante” à maneira da capital federal e dos grandes centros europeus, caracterizando-se pelas “diversas ocupações amáveis que a gente fina tanto aprecia”: literatura, música, artes plásticas, teatro e cinema.

Orientada por esta verve cultural, a Manchester Mineira, logo no início do século XX, já se mobilizava preservação de sua memória. O trabalho pioneiro do escritor Lindolfo Gomes contribuiu muito para inspirar e impulsionar outros protagonistas a se engajarem nos movimentos reivindicatórios pela preservação do patrimônio da urbe. Da tentativa de Gomes pelo tombamento do prédio da Fazenda do Juiz de Fora, iniciada nos anos 1930 por suas “Nótulas” publicadas no Diário Mercantil, à decepção e tristeza pela perda do conjunto (capela e colégio) Stella Matutina e outras lutas na década de 1980, Juiz de Fora atravessa momentos de vitórias e, muitas vezes, de descaso na preservação e conservação de seus prédios históricos, suportes de sua memória social.

Memorabilia Urbis, é concebida e referenciada nas orientações museológicas por um debate em torno das paisagens culturais, construídas por sujeitos, testemunhas de diversas heranças culturais, com múltiplas influências na arquitetura, na culinária, nos costumes, nas vestimentas, nas artes e ofícios. Além de apresentar trabalhos que ressignificam dados de nossa memória cultural, esperamos despertar os visitantes para as perdas definitivas que nos atravessam, sem a preocupação com aquilo que nos foi importante e afetuoso.Mediante o olhar destes artistas, sinalizadores de memórias da urbi, ecoa o grito de salvaguarda das paisagens que remanescem na nossa Atenas de Minas.

EX–VOTO
Francisco Brandão

O Museu de Arte Murilo Mendes incorpora à mostra MEMORABILIA URBIS a intervenção Ex-Voto do artista Francisco Brandão, recentemente apresentada à rua Halfeld, em Juiz de Fora, que teve abreviado tempo de vida devido à limitação da sensibilidade e à formação cultural das autoridades municipais, que imaginaram na criação uma ato de conspurcação do espaço coletivo, deplorável julgamento acossado de repressão.

Mesmo diante de poucas horas de exposição, a intervenção atingiu o desejo do criador, obtendo, entre os passantes que cruzaram a Halfeld, aceitação e deslumbre pela coragem e destemor do artista de ver na rua um lugar de manifestação das ideias plásticas, a exemplo das manifestações políticas. Ex-Voto, do latim “voto realizado”, conceitua ser uma lembrança de cunho religioso do fiel ao santo de devoção, um agradecimento por graça obtida ou por expressão de renovação de promessa.

A gênese desta admirável e original intervenção orienta-se nos resquícios do contexto religioso familiar do criador que, inteligentemente, pelo uso arquétipo das penas, nos induz, alegoricamente, às penitências, à purgação da vida.

Sentenciado da própria ideia, Francisco Brandão, agraciado de profunda reverência, impõe-se devoto a fabricar 20 mil penas seriadas de gesso, objetos que, dispostos singularmente na rua Halfeld, garantiram à sua criação imprevisibilidade, maior originalidade, despertando a curiosidade dos passantes, além da conferir variação à rotina do espaço.

O acatamento da subversão da ordem habitual do espaço causou tanto impacto entre os passantes que os impulsionou à defesa do criador e da sua criação em redes de sociabilidade e os levou a colher as semeadas penas como um suvenir de memória, outrora de Brandão, e, por magnetismo, de todos.

Brandão teceu um manto de penas, testemunho da força miraculosa da vida e de vivência à cidade.

A princípio, o criador que tinha na romântica chuva, aos pés do sopé do morro do Imperador, o adversário cruel da ideia acabou nos revelando rara oportunidade de diagnosticar sobre o ridículo das instituições que nos rodeiam. Assim, Ex-voto cumpre o papel da arte que, mesmo sendo mentira, nos remete à verdade. A arte é, com eficácia, um espelho do mundo, uma representação do saber e consciência, onde cada homem, como ensina Chesne, se deseja ver a si mesmo, se deseja contemplar a grandeza de sua alma, deve dirigir o olhar sobre esse espelho do mundo.

Pinho Neves, 2016