Museu de Arte Murilo Mendes | MAMM

Contemplação de Ouro Preto

Sacralizada na história, arte e literatura, dorme, Ouro Preto, dorme…

As cidades sempre despertaram solicitude à obra de escritores. Observadas, por vezes, como lugares simbólicos e afetivos, emanam fontes inspiradoras a suscitar juízos no movimento de identificação dos desígnios nacionais. Algumas mineiras, muitas, de desiguais geografias, sempre despertaram a cobiça dos gentios e testemunharam a história, âmago imperioso da herdade de Vila Rica, dantes Arraial do Padre Faria, berço da liberdade, palco da Inconfidência Mineira (1792). Caudalosa de ambição áurea e religiosa, cingida de branco véu da memória, Ouro Preto, que outrora recitou por seus mortos a história a Cecília Meireles, assenta-se primordial ao redescobrimento do Brasil pelos modernistas, em 1924, na célebre viagem aos domos barrocos, acompanhados do poeta franco-suíço Blaise Cendrars que lhes desvelou a nova fortunosa realidade cultural, lição apostilada no Manifesto Pau-Brasil que prescreve “substituir a perspectiva visual e a natural por uma perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua” na condição da “alegria dos que não sabem e descobrem ”.(Oswald de Andrade).

Símbolo de nacionalidade e amotinação a terra de Marilia de Dirceu, com seus altares, muros, musgos, perpétuas e zínias, mistério e “batizado”, arrebatou o poeta Murilo Mendes que, sob o baldaquim poético, escreve entre 1949 e 1950, Contemplação de Ouro Preto (1954), suíte barroca, um colóquio soturno e fatídico decorrente da experiência real e de pessoal imaginação, cujo entusiasmo ocorre no rastro do alento modernista firme na restauração do passado nacional, resguardada em diversos textos notáveis, a exemplo, o segmento dedicado as cidades históricas por Carlos Drummond de Andrade no livro Claro Enigma (1951).

Mediante o vocábulo “contemplação”, título do livro, revela – se a atitude de abstração do poeta, uma postura metafísica considerando que cum tem plum de nota estar no templo, no lugar sagrado.

Burilado no sistema de crenças, concepções e costumes determinantes à identidade mineira, o conjunto de poemas murilianos de Contemplação de Ouro Preto guarda indícios afetivos pelo imaginário religioso de Minas e pela história sugestionada por Ouro Preto, geografia e memória, daquela que, um dia, por contumácia ao poder e semeado terror, testemunhou à cabeça do herói se devorar no tempo.

Por simultaneidade, o poeta descreve as condições materiais e fixa uma leitura da vila (rica), de pedra e ouro, imaginada.

Resultância das suas viagens  a Minas das barrocas Ouro Preto e Mariana, Minas do mestre Guignard, publicado pelo Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura, com impressão a cargo do Departamento de Imprensa Nacional, da então capital federal, em 1954, ilustrações fotográficas de Humberto Moraes Franceschi e Erick Hess, Contemplação de Ouro Preto é dedicado à memória dos pais do poeta Onofre Mendes e Elisa Valentina Monteiro de Barros.

Dos dezenove poemas integrantes do livro, somente dois não possuem dedicatórias, sendo dezessete dedicados aos poetas Manuel Bandeira e Cecília Meireles, aos pintores Guignard e Marcier, ao arquiteto Lúcio Costa, ao jornalista e escritor Rodrigo de M. F. de Andrade, ao político Gustavo Capanema, à irmã Virgínia Eucharis e outras personalidades que integram a rede de sociabilidade de Murilo Mendes, principalmente, no Rio de Janeiro.

Às páginas iniciais do livro,  percebe-se um agradecimento singular ao amigo Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, profundo conhecedor da língua portuguesa que o auxiliou na redação definitiva do texto.

Contemplação de Ouro Preto advém ser a primeira obra de Murilo Mendes de prenunciação de espaço geográfico de cunho histórico-cultural. Esta meditação sobre história corporificada em Ouro Preto, “dá inicio à proeminência que a temática cultural passa a adquirir em sua obra”(Júlio Castanon) evidenciando seu interesse por cidades memoriais prenunciadas nos livros Tempo espanhol (1955-1958), Janelas verdes (1970) e A idade do serrote (1965-1966) e em alguns “grafitos” do Convergência (1963-1966).

No sono da redenção ninado ao acalanto dos escravos do Rosário, sob  o desvelo do Itacolomi, no desassossego do sortilégio de fantasmas dos inconfidentes e do acolhimento epifânio dos santos, trágica e assombrada, dorme, Ouro Preto, dorme “o sono da libertação” ( Murilo Mendes).