Museu de Arte Murilo Mendes | MAMM

Livros para amar

Maria de Lourdes Abreu de Oliveira é uma escritora que não se conforma em ver uma estante repleta de livros sem os devidos leitores para apreciá-los. “Movimentar uma obra é conferir vida às histórias que ela tem para contar”, costuma dizer. Por essas e por outras é que doou seu acervo literário ao Museu de Arte Murilo Mendes, que, em julho deste ano, recebeu cerca de 2.500 títulos que lhe pertenciam, alguns de sua autoria, e outros velhos companheiros de uma longa trajetória como professora de literatura brasileira na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e de literatura portuguesa no Centro de Estudos Superiores (CES).

O Mamm respondeu à altura a generosidade de Maria de Lourdes, e já está com a coleção higienizada pelo Laboratório de Conservação e Restauração de Papel e em fase de catalogação pelo Setor de Biblioteca e Informação. São obras diversas, de autores brasileiros e estrangeiros, exemplares entre os quais se destacam Bravo Brasil, Pessoa sob persona, Antigamente no porão, De olhos bem fechados, O menino da ilha, Corpo estranho, Caminhos da narrativa ficcional brasileira, Eros e Tanatos no universo textual de Camões, Antero e Redol, todos da escritora, que está em plena atividade, preparando uma nova obra, ainda sem título, para publicação.

O diretor do Mamm, José Alberto Pinho Neves, destaca a importância da doação como referencial de uma escritora que contribuiu por décadas com o ensino e a pesquisa na UFJF, lembrando que a coleção de Maria de Lourdes vem ao encontro do acervo do Museu, já com 12 mil livros, cujo destaque é a coleção do poeta Murilo Mendes, à qual foram acrescidas as bibliotecas de renomados intelectuais juiz-foranos, como Dormevilly Nóbrega, João Guimarães Vieira, Arthur Arcuri, Cleonice Rainho, além de Gilberto Alencar e Cosette Alencar.

Curadora e tutora da obra de Maria de Lourdes, a coordenadora do programa de Mestrado em Letras do CES, Moema Rodrigues Brandão Mendes, destaca o privilégio de fazer a intermediação desse acervo. A importância dessa doação está também ligada ao fato de um espaço como o Mamm oferecer justa visibilidade a uma das grandes, embora ainda esquecidas, vozes de Minas. O trabalho de deliberação das obras que não estão na casa do poeta juiz-forano ainda está em andamento, mas Moema acredita que poucos são os escritores que, como Maria de Lourdes, tiveram a prerrogativa de acompanhar de perto a destinação de sua biblioteca.

Roda que gira

O momento é de transformações na vida de Maria de Lourdes. Aos 83 anos de idade, ela se muda de uma casa que ocupou por 45 anos para uma granja que está fazendo bodas de prata sob seus cuidados. Separar o joio do trigo é tarefa à qual se dedica com afinco, com a ajuda da amiga e discípula Moema, e também de Leila Rose Márie Batista da Silveira Maciel, a fim de conservar alguns livros em seu poder, os “queridinhos”. Não se trata de rejeitar a maioria. Ao contrário, a intenção é que todos os exemplares sejam amados por outros leitores. Uma espécie de salvação contra a mesmice de uma vida condenada às traças, à poeira e ao mofo, inimigos mortais de uma biblioteca sem uso.

“Minha intenção é contribuir para que as pessoas se apaixonem por esses livros, arquivos de uma vida, que me foram tão úteis, tão caros”, diz, considerando a doação ao Mamm/UFJF uma espécie de “salvação da fogueira”. Palavras dela, que quer seus antigos livros sendo lidos, manuseados, descobertos e amados por leitores ávidos por novos universos. “A vida é assim”, sentencia, lembrando Vinicius de Moraes com a frase “o amor (por um livro) é eterno enquanto dura”. Por isso, sua expectativa é a de que o acervo continue em movimento, incentivando o hábito da leitura em um país ainda à margem dessa preferência.

Somatória

Em sua sala no CES, Moema se entusiasma ao falar de Maria de Lourdes. Elas se encontraram no curso de Letras da UFJF, uma como aluna, outra como professora, mas foi o conhecimento de contos e romances da premiada escritora, tempos depois, que suscitaram a admiração e a amizade cultivadas com tanto afinco. “Ao ser apresentada ao seu trabalho autoral, me apaixonei. Os contos ‘Brigite’ e ‘Lara, deusa do silêncio’ evidenciaram o surprise ending como um recurso extraordinário, que me instigou a conhecer toda a obra”.

Com o passar do tempo, Moema fortaleceu os laços dessa relação e, recentemente, veio a aprovação de Maria de Lourdes para uma primeira destinação de sua coleção de livros. Bastante eclético, o acervo teve que passar por rigorosa apreciação da tutora em comunhão com a autora. “Nós nos encontramos com a direção do Mamm, que sempre apoiou nossas pesquisas, e ficaram definidos critérios para esse primeiro descarte. Foi decidido que iriam para o Museu as obras de autoria própria, os livros que contivessem dedicatórias, os exemplares que apresentassem marcas de estudo ou anotações, além dos títulos em língua estrangeira (inglês, francês e espanhol) sobre os quais tivesse trabalhado em algum momento de sua trajetória”, explica.

Generosidade inspiradora

Moema confessa que à época do primeiro descarte do acervo lhe veio uma ideia que acabou sendo abraçada por Maria de Lourdes. Cada professor com quem a escritora conviveu poderia tirar dez livros para estudos, devidamente inventariados e com um carimbo de doação do acervo em questão. Isso já está sendo providenciado. Às escolas Municipais serão destinados os clássicos e outras obras literárias que contemplem o público infanto-juvenil e que possam promover e incentivar a leitura nessa faixa etária. Há seis caixas, com cerca de 30 livros em cada, que poderão ser escolhidos pela escola convidada e doados de acordo com a justificativa apresentada.

Há também uma coleção de revistas editadas entre os anos 1950 e 1970, que abrangem desde publicações locais, como “O Lince” e “Lumina Spargere”, esta da UFJF, até as renomadas “O Cruzeiro”, “Vozes”, “Manchete”, “Alterosa”, “Tempo Brasileiro”, “Vida Doméstica” e “Clube Militar”, do Rio de Janeiro. “Neste momento, a fase de captação dessa parte do acervo ainda está em finalização, havendo também uma série de manuscritos sob minha custódia para análise e destinação”, esclarece.

Mais de Maria

Maria de Lourdes nasceu em Maria da Fé, no sul de Minas, filha de Maria Antonieta e Abílio Lopes de Abreu. Casou-se com Júlio Cruz de Oliveira, ex-professor da Faculdade de Odontologia da UFJF. Sempre dedicada à família, teve dois filhos, Júlio César e Juliana Helena. É avó de Rafaela e bisavó de Alice. Formou-se em Letras Clássicas, em 1956, pela antiga Faculdade de Filosofia e Letras (Fafile), tendo cursado mestrado e doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Percorreu um caminho de 62 anos como docente, começando, em 1968, a dar aulas de literatura na UFJF até se aposentar em 1995, e, mais tarde, integrando o Programa de Mestrado em Letras do CES até 2015.

Sua trajetória como escritora inclui importantes prêmios, com destaque para o Cidade Belo Horizonte, o João de Barro de Literatura Infantojuvenil (“O menino da ilha”), o Bloch Nacional de Romance (com a dissertação “Pessoa sob persona – olhar e olhado em O Delfim”), o Concurso Petrobras de Literatura (“De olhos fechados”, inspirado em sua tese). Publicou inúmeros romances, contos e novelas, além de ter sido alvo de estudos e trabalhos acadêmicos, que renderam obras como “Colar de Contos Premiados”, organizado por Moema.

Maria de Lourdes é uma das personalidades mineiras abarcadas pelo projeto Diálogos Abertos, tendo seu depoimento gravado em 22 de julho de 2008, no Mamm. Ela integra o livro 5 do projeto, que pode ser conferido no link  http://www.museudeartemurilomendes.com.br/r/da/da5.pdf